Quando eles te olham, mas não te veem
Relato de quem cansou de ser vista como um pedaço de carne quando só queria ser amiga — sobre o alívio de ser enxergada por inteira e o medo constante de voltar a ser reduzida a nada.
Há alguns anos, me vi chorando em meu quarto após sair da casa de um amigo — alguém que eu considerava meu irmão — ele havia tentado cruzar aquela linha invisível, que tínhamos entre nós. Naquela noite, não estava chorando por ele, e sim porque, mais uma vez, pude ver que não me sentia inteira. E aquela vozinha ressoou em minha cabeça: “Mesmo depois de tanto tempo, ainda era difícil para alguns homens me verem como uma pessoa, e não como um corpo disponível.”
E, claramente, essa história não começa aqui.
Ela começa quando eu era uma menina que gostava de brincar de lutinha com o pai e ver aqueles filmes loucos de ação e super-heróis com ele. Ele sempre me lembrava que eu precisava ser “forte”, e, quando eu vencia a “luta” e ele me parabenizava, parecia que finalmente eu tinha aquela validação que tanto procurava. E assim, supus que, para ganhar meu afeto, precisava ser “diferente” e um pouco mais durona que outras meninas. Sem perceber, lá estava eu associando conexões masculinas a uma espécie de prova de valor: se eu me encaixasse nos interesses deles, talvez fosse digna de respeito.
Então, alguns anos depois, ocorreu um abuso. Não vou me detalhar aqui, mas veio de alguém que eu considerava estar seguro. E, de repente, todo aquele esforço para ser "a menina que os homens veem como amiga" desmoronou. Parecia que a fantasia que tinha criado na minha cabeça — de que homens podem me enxergar além de um objeto — foi desconstruída, e eu voltei para o mundo onde todos os homens eram escrotos. Percebi que, não importava o quanto eu tentasse me adaptar, alguns ainda me reduziriam a uma mulher para “comer”. A dor não era só a violência em si, mas a sensação de que minha voz nunca tinha importado, que eu meramente estava sendo usada para alcançar metas e objetivos.
Foi assim que comecei a buscar amizades masculinas estritamente platônicas. Não por ódio aos homens ou por medo do romance, mas precisava desesperadamente provar para mim mesma que era mais do que um pedaço de carne. Cada amizade assim era um experimento silencioso. "Será que esse aqui me escuta sem olhar para minha bunda?", "Será que ele ri das minhas piadas sem pensar que assim pode ter uma chance comigo?". E eu sei — parece que me acho a mulher mais desejada do mundo. Não sou. Mas essas perguntas vinham, inevitavelmente. Quando encontrava alguém que me via por inteira, era como se todo o ar do mundo voltasse, e agora eu pudesse respirar fundo após anos sufocando. Esses homens — poucos, mas estritamente únicos — tornaram-se uma espécie de conforto. Eles me lembravam que eu podia ser eu mesma, inteira: inteligente, vulnerável, engraçada, chata, sem que isso fosse um convite para algo mais.
Mas há um paradoxo nisso tudo. Enquanto eu buscava essas amizades como forma de abrigo, também carregava uma desconfiança que às vezes me isolava. "E se ele acordar um dia e decidir me ver de outra forma?", "E se eu estiver sendo ingênua de novo?". Percebi que meu desejo por conexões "seguras" era, ao mesmo tempo, uma forma de autoproteção e uma armadilha. Proteção, porque criava limites claros; armadilha, porque às vezes me impedia de confiar até mesmo naqueles que mereciam. Pensar nessas desconfianças era inútil. Eu nunca conseguiria controlar os pensamentos ou sentimentos dos outros — nem eles mesmos conseguem, quem dirá eu.
Esse dilema é muito bem representado na amizade entre Jo March e Laurie Laurence, em Little Women.
Jo é uma personagem que quer ser vista por inteira: criativa, intensa, livre. E, com Laurie, ela encontra o que muitas de nós buscamos — um amigo que a respeita, se diverte com ela, compartilha seus interesses. Durante um tempo, essa amizade representa justamente esse espaço raro onde uma mulher pode existir sem ser reduzida a um corpo ou expectativa romântica.
Mas, quando Laurie se apaixona, parece que tudo desmorona, o equilíbrio se quebra. Jo recusa — não por desamor, eu acredito mas sim porque no fundo ela sabe que algo se perderia. Ela teme ser transformada em ideal, em projeção. O medo de ser vista de outra forma invade aquele lugar que era tão seguro.
No fundo, talvez Jo até amasse Laurie. Mas ela entendeu que amor, para existir com liberdade, precisa ser escolha — e não imposição
Hoje, entendo que essa busca não é sobre os homens. É sobre mim. Sobre aquela criança que queria aprovação e atenção do pai, a adolescente que passou poucas e boas, e a jovem que ainda luta para se enxergar como alguém completa por si só.
Se você se identifica com isso, talvez esteja cansada de ouvir que "homens e mulheres nunca podem ser só amigos". Eu também. Porque essa frase ignora o ponto central: não se trata do que homens podem ou não podem sentir, mas do direito de existirmos em relações onde somos vistas e ouvidas. Não como corpos, troféus ou projetos românticos, mas como humanas complexas, cheias de camadas que vão muito além do gênero.
No final, não precisamos evitar todos os homens — ou ser amiga de todos —, até porque “todos” é muita gente. Trata-se de entender que não precisamos dessas validações para sermos completas. Somente nós podemos resolver o que está aqui dentro. O nosso valor não depende de quem valida — seja um pai, um amigo ou um parceiro —, mas de quem eu decido ser, todos os dias, mesmo quando sinto que o mundo insiste em me reduzir.
Talvez o seu desafio não seja com homens, mas com mulheres. Não importa. O ponto é: não é errado exigir conexões que respeitem sua humanidade. É essencial.
Obrigada por ler até aqui, espero que tenha gostado!